terça-feira, 23 de agosto de 2011

Pelas margens: representação na narrativa brasileira contemporânea

Pelas margens: representação na narrativa brasileira contemporânea
Organização e apresentação: Regina Dalcastagnè e Paulo C. Thomaz
264 páginas
ISBN 978-85-99279-33-5
Pelas margens traz uma abordagem muito bem amparada teoricamente da produção literária contemporânea, estudando as vozes marginalizadas, invisíveis, atualmente bastante representadas em nossa produção literária. Tanto os organizadores como os pesquisadores envolvidos neste trabalho participam do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea e “se debruçam sobre questões que envolvem a teorização crítica do que entendemos por representação, o papel do intelectual nos domínio do exercício desta exclusão e os modos discursivos literários que formulam novas cenas para a ficção contemporânea” - Regina Dalcastagnè e Paulo C. Thomaz.

Livros da Editora Horizonte

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quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Burocracia e participação, de Marianne Nassuno é resenhado por Adelto Gonçalves

Burocaria e participação, de Marianne Nassuno é resenhado por Adelto Gonçalves.


Burocracia x sociedade                                                                                                                                                                                                                      I

            No século 19, os pensadores liberais imaginavam que, com o desenvolvimento da livre empresa, a função do Estado iria se reduzir ao mínimo, pois a evolução da espécie humana seria espontânea. Os anarquistas também idealizavam um mundo em que as grandes questões seriam resolvidas pela livre discussão e o Estado ficaria cada vez menor até sumir. Os comunistas, que fizeram do Estado instrumento para a tomada do poder em nome dos operários e camponeses, acreditavam (ou fingiam acreditar) que, com o socialismo, o Estado seria pulverizado, até o seu lento desaparecimento.

            Como se sabe, nenhuma dessas previsões se confirmou. O Estado está cada vez mais forte e, nas mãos de tiranos – que geralmente não passam de pessoas medíocres, malvadas e extremamente egoístas, que costumam acumular riqueza em paraísos fiscais ou na velha Suíça –, torna-se o Leviatã imaginado pelo filósofo inglês Hobbes (1587-1666), sempre pronto a ajudar os mais favorecidos, em detrimento das massas marginalizadas, seguindo as recomendações da oligarquia financeira transnacional.

            Como disse o poeta e pensador mexicano Octavio Paz (1914-1998), no ensaio “El ogro filantrópico” (1978), o Estado moderno constitui uma superestrutura de grandes empresas, sindicatos empresariais, centrais sindicais (que representam muitos interesses, menos os dos trabalhadores em nome dos quais atuam) e uma burocracia que vive em contínua relação com os grupos com os quais compartilha o domínio da máquina estatal. Por isso, segundo Paz, o Estado moderno é hoje uma máquina, mas uma máquina que se reproduz sem cessar.

            Portanto, o grande desafio de hoje, ao menos daqueles que ainda têm um pouco de consciência social, é imaginar formas de impedir que a máquina estatal – a nível federal, estadual ou municipal – seja tornada refém dos interesses de empreiteiros e políticos ávidos por obras públicas que, muitas vezes, nenhuma finalidade social têm. Não é a toa que lemos nos jornais tantas notícias sobre obras superfaturadas, prédios, pontes, rodovias e viadutos que não foram concluídos e viraram monstrengos urbanos, dinheiro desviado de fins mais nobres, como merenda escolar e compra de medicamentos, e toda a sorte de patifaria que o despudor humano pode imaginar.

            Fazer com que a burocracia tenha maior integração com a sociedade é uma luta cada vez mais vã, pois o natural é que a máquina administrativa se adapte aos interesses dos políticos e dos partidos que assumem o poder. E, como ninguém chega ao poder por força de seus próprios recursos financeiros, é preciso satisfazer àqueles que financiam a campanha. Em outras palavras: empresas ou empreiteiros precisam ganhar licitações arranjadas e arrematar contratos superfaturados para que não só tenham altos lucros e possam crescer como ainda manter um fundo de caixa para financiar outros políticos e novas campanhas.

            Assim segue o Estado patrimonialista, de que falava o pensador alemão Max Weber (1864-1920), em que famílias ou clãs dominam os negócios que seriam públicos. E a sociedade como fica? Ora, periodicamente, é chamada para coonestar eleições manipuladas pela força do dinheiro. No resto do tempo, fica esquecida porque fora do Estado não há nada nem ninguém.

            Contra essas evidências, de vez em quando, há quem se rebele ou tente sacudir a apatia política dos cidadãos. A ideia da gestão participativa é uma dessas tentativas. Foi colocada em prática em Porto Alegre, de 1989 a 2004, durante quatro gestões consecutivas de uma coligação de partidos de esquerda liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Estudar os resultados dessa experiência foi a que se propôs Marianne Nassuno em Burocracia e participação: a gestão no orçamento de Porto Alegre (Vinhedo-SP: Editora Horizonte, 2011), originalmente tese de doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB).

                                                           II

            Para fazer o seu trabalho, a autora levou em conta, por um lado, a visão weberiana de que os burocratas constituem um grupo com aspirações de poder próprio derivado do domínio de conhecimento técnico e, por outro, a reflexão do economista e cientista social norte-americano Mancur Olson (1932-1988) segundo a qual o egoísmo racional dos indivíduos limita a ocorrência de ações coletivas. E incorporou também a ideia que permeia a chamada nova gestão pública, movimento britânico da década de 1980, que prevê a privatização em larga escala de serviços públicos, a adoção de princípios de administração do setor privado, ênfase na eficiência e valorização do papel dos gerentes/administradores.

            Como esses princípios quase nunca são levados em consideração no Brasil, o que um prefeito hoje – quase sempre eleito com recursos fornecidos para a sua campanha por empreiteiros e outros empresários – mais busca é viabilizar obras públicas que possam ser atendidas por aqueles que apoiaram com dinheiro sua candidatura e viraram fornecedores da prefeitura.

            Se a obra vai atender a necessidades da população em geral, tanto melhor, mas a ordem de prioridade é aquela. Basta ver que, em grandes cidades, bairros degradados ou áreas desocupadas quase sempre são revitalizados levando em conta os interesses de empresas de construção civil e da especulação imobiliária. Já os investimentos na periferia – onde há pouca especulação imobiliária, pois o metro de terreno é barato – quase sempre custam a sair do papel, quando saem.

            Também não é coincidência que os responsáveis pela arrematação dos serviços de coleta de lixo domiciliar, por exemplo, sejam com freqüência alvo de denúncias de corrupção.  Invariavelmente, a empresa acusada de usufruir de preços superfaturados – e suportados com dinheiro público – pertence a um daqueles que apoiaram a candidatura do prefeito.

            No entanto, como mostra Marianne Nassuno, é possível estabelecer uma relação de maior interação do setor público com a sociedade, a partir de um governo municipal adaptado às demandas de maior participação popular, a exemplo da experiência com o Orçamento Participativo de Porto Alegre (OPPA). Segundo a autora, o OPPA refere-se a um processo de participação que contribui para que as demandas populares sejam contempladas e levadas em conta no projeto de lei orçamentária enviado pelo poder executivo à câmara de vereadores e favorece o seu atendimento concreto durante a fase de execução do orçamento pela prefeitura.

                                                           III

        Observa a autora ainda que o OPPA é um processo pelo qual a população está envolvida em etapas do ciclo de políticas públicas: participa da definição de obras e serviços nos quais os recursos públicos serão aplicados e acompanha e controla a sua execução. Isso envolve um ciclo anual de encontros ou audiências públicas que reúnem representantes da prefeitura e das comunidades (carentes ou não) para fazer um levantamento das necessidades.

            Essa participação, obviamente, entra em choque com as atribuições dos vereadores, que, invariavelmente, representam grupos de pressão da sociedade, ou seja, grupos organizados por trás dos quais sempre se escondem interesses particulares. E não raro causa choques entre a municipalidade e a câmara, o que pode levar o prefeito a recuar em suas intenções de estimular a maior participação da comunidade, já que depende do voto dos vereadores para a aprovação de projetos de interesse da prefeitura.

            Seja como for, o que se pode dizer é que a experiência com o OPPA apresentou resultados significativos na medida em que atua como anteparo ao aumento das funções do Estado pela organização burocrática, o que se tem dado em dimensões sem precedentes, fato que obviamente apresenta implicações negativas para o próprio desenvolvimento da democracia. Nas mãos de um demagogo, que sabe como falar (e ludibriar) as massas, esse Estado burocratizado facilmente pode ser dirigido a um sistema fechado e totalitário. Como diz Octavio Paz, a conjunção do poder político e do poder econômico – ambos absolutos, imunes a contestações – não produz nem a revolução democrática burguesa nem o socialismo, mas sim a implantação de uma ideocracia totalitária.

            Para evitar o monstro totalitário, é preciso que haja regras que limitem o poder e as funções do Estado. E o único recurso contra o crescimento desmedido do Estado e o mau uso do poder público é fazer incidir a luz que predomina na visibilidade da esfera pública, como ensina a pensadora alemã Hannah Arendt (1906-1975), citada por Marianne Nassuno. Por isso, a participação de lideranças comunitárias – geralmente, pessoas que nada recebem para exercer esse papel – é sempre bem-vinda. Constitui essa uma forma de não só resgatar valores da democracia como exercitar um ensinamento do pensador francês Montesquieu (1689-1755), como bem observa Marianne Nassuno: problemas políticos requerem soluções políticas. E não a “solução” que o suposto conhecimento técnico do burocrata pode dar.

            Em resumo: se nos últimos 30 anos, os administradores públicos brasileiros tivessem levado em consideração as ideias da gestão participativa, com certeza, a educação teria recebido mais recursos, teriam sido construídas escolas em maior número e a categoria do professor não seria hoje tão desvalorizada e desprestigiada. Como isso não se deu, os números mostram que a maior parte da massa carcerária brasileira de hoje é constituída por pessoas com menos de 30 anos, analfabetas e sem qualificação profissional, mas altamente capacitadas para engrossar os exércitos do tráfico de drogas, principalmente depois da “especialização” por que passam involuntariamente nas penitenciárias. Quer dizer: os recursos que não foram investidos na educação nas últimas três décadas terão de ser aplicados agora na construção de penitenciárias e no reequipamento e fortalecimento das polícias estaduais e da Polícia Federal.

            Portanto, como a burocracia por si só não garante a democracia – pelo contrário, convive melhor com regimes totalitários –, a única forma de controlá-la para que não exceda em suas funções é abrir espaço para as liberdades públicas que só florescem com a participação de amplos setores da sociedade. Essa é a mensagem que Marianne Nassuno deixa em seu livro e que mereceria profunda reflexão de nossos homens públicos, se é que ainda existam homens públicos na melhor acepção do termo.

                                       IV

                Além de doutora em Sociologia pela UnB, Marianne Nassuno é mestre em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas. Para desenvolver sua tese de doutorado, estudou em 2005 com bolsa na Universidade Livre de Berlim. Em 1992, estudou na Escola Superior de Direito Empresarial e Ciências Sociais da Universidade de Saint Gallen, na Suíça.  É integrante da segunda turma da carreira de especialista em políticas públicas e gestão governamental, atualmente em exercício na Secretaria Executiva do Ministério da Cultura. Foi gerente de 1998 a 2000 da Escola Nacional de Administração Pública (Enap).

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BUROCRACIA E PARTICIPAÇÃO: A GESTÃO NO ORÇAMENTO DE PORTO ALEGRE, de Marianne Nassuno, com prefácio de Luiz Carlos Bresser-Pereira. Vinhedo-SP: Editora Horizonte, 222  págs., 2011, R$ 33,15. E-mail: contato@editorahorizonte.com.br Website: editorahorizonte.com.br

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br

Adelto Gonçalves resenha Histórias invisíveis de Marco Bin e Monica Nunes

Histórias invisíveis, de Marco Bin e Monica Nunes é resenhado por Adelto Gonçalves.

ANÔNIMOS E FAMOSOS

Não há quem não aspire à celebridade, ainda que instantânea, os famosos quinze minutos de fama a que todos, um dia, teriam direito, na igualmente célebre previsão de Andy Warhol (1928-1987) da década de 1960. Até mesmo aqueles homens célebres que anunciam aos quatro cantos do mundo que não mais recebem a imprensa, pois o que mais prezam na vida é viver em reclusão, longe dos olhos da multidão, no fundo, o que querem é chamar a atenção de todos. Ou será que não era exatamente isso o que pretendia o famoso J. D. Salinger (1919-2010)? Ou a bela Ava Gardner (1922-1990), que passou o seu último ano de vida reclusa num apartamento em Londres?

A expressão “quinze minutos de fama” referia-se geralmente a uma pessoa anônima que ganha notoriedade de maneira repentina, muitas vezes em razão de algum escândalo de que participa voluntária ou involuntariamente, de um programa de televisão ou algum fato de grande cobertura na mídia. Hoje, não há como deixar de relacionar a expressão a fenômenos da Internet. Afinal, poucos são aqueles que, gostando de escrever e expressar seus sentimentos, ainda resistem à criação de um blog, enquanto os mais afortunados preferem mesmo encomendar um site a um webdesigner. 

Mas há os verdadeiros anônimos, ou seja, aqueles que nunca freqüentarão a Internet nem terão seus nomes localizados numa busca do Google, que vivem uma vida cinzenta, ainda que, muitas vezes, tumultuadas em suas relações com o semelhante. E que nunca terão o rosto estampado numa coluna social, ainda que de uma gazetilha de bairro. Para arrancá-los do limbo só mesmo o olhar arguto de um contista daqueles capazes de registrar no papel um instante de vida, já que, geralmente, a trajetória dessas pessoas comuns não sustentaria um romance ou uma novela mais alentada.

É que o que fazem em Histórias invisíveis, com indisfarçável perícia, Mônica Rebecca Ferrari Nunes e Marco Antonio Bin, professores universitários por profissão e observadores do cotidiano por compulsão, ao resgatar personagens do espaço urbano da cidade de São Paulo nos 12 contos reunidos neste livro. São contos que “procuram fazer visíveis pequenas e grandes dores, o que se acha sem procurar, o que atropela uma segurança não tão segura”, como diz na apresentação Jerusa Pires Ferreira, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia universidade Católica (PUC), de São Paulo. E que, muitas vezes, escondem ou disfarçam uma parte da verdade para desafiar o leitor a descobri-la, ou seja, levá-lo a gastar mais alguns instantes para imaginar o que teria sido a vida dos personagens além do conto e, dessa forma, reescrevê-lo à sua maneira.

II

No conto “Elvira e Ribeiro” – aliás, os 12 contos levam por título os nomes de seus personagens –, lê-se a história de um amor de encanecidos: Elvira, 67 anos, portuguesa, viúva, vivia sozinha num pequeno apartamento no centro de São Paulo, “sem crianças em porta-retratos, sem bordados madeirenses sobre os móveis coloniais”. De Portugal, a vaidosa Elvira guardava os discos de fado, fadista amadora que era.

Frequentadora da Biblioteca (Mário de Andrade, com certeza, ainda que não explicitada), logo passou a fazer parte de um grupo de leituras. E conheceu um amigo, também viúvo, o Ribeiro, 70 anos, que tinha um filho que morava no interior e era dono de um cão vira-latas malhado, o Argo.  “A idade, em Elvira, nada lhe roubava a volúpia nem lhe corrompia a beleza erótica, o feminino afeito às jóias trazidas dos tempos d´África, aos sândalos e às cores quentes que usava”, escrevem. Por aqui se vê o estilo dos autores que vai preparando o leitor para o final insólito.

Já em “José Anísio” o que o leitor vai encontrar é um perfil bem acabado de um zelador de prédio, de idade aproximada de 60 anos, que desempenhava o seu serviço havia pelo menos vinte anos, no mesmo endereço, na Avenida São Luís, no tumultuado centro velho da megalópole. Respeitado por sua discrição, gostava de circular pelos andares, ouvir as queixas dos moradores, tomar as providências que lhe cabiam. Dividia com o filho mais velho um cubículo no oitavo andar do que prédio de que cuidava, mas a família e seus outros cinco filhos viviam numa casa da periferia, a que só de tempos em tempos voltava. Por isso, sonhava com a aposentadoria e o dia em que não precisaria mais viver no coração da grande cidade.

Em “Jonas e Valeriana”, acompanha-se o amor de uma atendente de balcão de uma panificadora por um padeiro – não o proprietário, mas o humilde fazedor de pães –, sua vida modesta de quem trabalhava doze horas por dia, fazia viagem de uma hora e meia, tanto na ida como na volta do emprego, chegando em casa por volta das oito da noite, “até seu cantinho de três cômodos que dividia com duas amigas”.

O leitor, porém, está diante de um padeiro pouco usual, personagem dostoievskiano, que aproveitava seus quinze minutos de descanso para escrever cartas à mesa da cozinha. E de uma atendente de balcão que, em vez de se imbecilizar diante de uma televisão, preferia passar as horas de folga a ler livros de ficção. Valeriana nunca haveria de perguntar a Jonas o que lhe dava tanto motivo para escrever, “e pensava no romance que ele escreveria, os personagens, os lugares, a história, e sorria timidamente ao imaginar-se descrita por Jonas...” O desfecho, mais uma vez, surpreende o leitor, pois acompanha a desilusão de Valeriana, diante da indiferença do companheiro de trabalho, que a levaria até a largar o emprego. Mal saberia Valeriana que as cartas que Jonas escrevia, como os sinos de John Donne (1572-1631), eram escritas para ela.

Como se constata por aqui, estes são contos com fluência textual e estilística muito próxima da oralidade que mostram retalhos da vida na cidade grande, sem deixar de recorrer à ironia satírica, que, por isso mesmo, lembram alguns textos de Machado de Assis (1839-1908), até mesmo pela leveza do tom e pela sutileza.  E, principalmente, por causa de seus desfechos que mais insinuam do que informam ou explicitam, levando o leitor a imaginar o que teriam sido aquelas vidas além daquele instante registrado (congelado) na página.        

III
Mônica Rebecca Ferrari Nunes é professora universitária, com doutorado e mestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, além de pesquisadora do Centro de Estudos da Oralidade (PUC-SP) e do Centro de Estudos de Música e Mídia da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Publicou O mito no rádio (São Paulo: Annablume, 1993), A memória na mídia (São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001), entre outros escritos teóricos.Marco Antonio Bin é escritor e professor universitário, com doutorado em Ciências Sociais e mestrado em Comunicação e Semiótica, ambos pela PUC-SP. Publicou a coletânea A paixão inútil (1997) e foi vencedor do concurso de dramaturgia da Associação do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Apcef), em 1991, com a peça Chatila, entre outras premiações. Mantém o blog de política, literatura e cinema www.chanasmontanhas.blogspot.com

Resenha de Adelto Gonçalves do livro Misteriosa pureza dos tolos de Marco Bin

Adelto Gonçalves resenha o livro Misteriosa pureza dos tolos, de Marco Beneton.


A entrada triunfal do pobre na literatura deu-se, a rigor, em 1554 com o “Lazarillo de Tormes”, de autor anônimo, editado quase simultaneamente em três cidades à época sob o domínio da coroa espanhola: Burgos, Antuérpia e Alcalá. É de supor que tenha havido uma edição anterior, que não chegou até nós, mas, seja como for, a ausência do nome do autor em sua portada tem uma explicação bem plausível: falar de pobre àquela época não seria de bom tom e, ainda por cima, colocar em questão a autoridade da igreja católica muito menos. Talvez por isso — e, mais ainda, em razão da rápida popularidade que o livrinho alcançou —, cinco anos depois, o “Lazarillo de Tormes” acabou na lista dos livros proibidos.

Desde então, o pobre na literatura mundial sempre rendeu bons contos e romances, como mostra “Gente Pobre”, de Fiodor Dostoiévski (1821-1881), publicado em 1846, ainda que os pobres de São Petersburgo não fossem tão pobres quanto os pobres da África, da Ásia e da América Latina que conhecemos hoje. No Brasil, o pobre só faz a sua entrada triunfal na literatura na década de 1930, época do romance social, de cunho neonaturalista, que boa parte da crítica uspiana costuma definir como uma vertente do Modernismo, talvez para dar à Semana da Arte Moderna de 1922 uma importância nacional que jamais teve.

É verdade que Mário de Andrade (1893-1945) com “Macunaíma” (1928), e Oswald de Andrade (1890-1954), com “Serafim Ponte Grande” (1933), deram uma contribuição significativa, mas não se pode resumir o romance modernista brasileiro a esses dois nomes. Afinal, não se pode esquecer que tanto “Cacau” (1933), de Jorge Amado, como “Os Corumbas” (1933), de Amando Fontes (1899-1967), provocariam grandes debates. De 1933 também é o romance “Parque Industrial”, de Patrícia Galvão, Pagu (1910-1962), que traz na capa a inscrição “romance proletário”, mas que, publicado em edição particular, teve pouca repercussão.

Portanto, pode-se dizer que o pobre entrou na literatura brasileira com todas as pompas a partir de 1933, ano que marca o auge do romance social ou proletário (e aqui o termo compreende não só o trabalhador como o lumpen, o mendigo e o marginalizado, ou seja, o deserdado em geral).

Que a vida dos pobres na cidade grande continua a inspirar bons livros não há duvida. Um exemplo recente é “A Misteriosa Pureza dos Tolos: Histórias Entre Ruas e Padarias” (Vinhedo-SP: Editora Horizonte, 2011), do advogado Marco A. H. Beneton (1969), um livro formado por 16 contos bem-humorados que nos fazem questionar por que as pessoas agem da maneira que agem, muitas vezes de uma forma que foge à luz da razão.

Obviamente, os personagens deste livro de contos já nada têm da literatura de cunho social da década de 1930 nem sonham em virar o mundo de cabeça para baixo para instalar o “paraíso” operário na Terra, ainda que seja debaixo do tacão de um partido político cujos dirigentes o primeiro que fazem quando alcançam o poder é se deliciar com os banquetes da corrupção.

Como o anarquismo dos imigrantes italianos e espanhóis da década de 1910, o comunismo das décadas de 1930 a 1950 que empolgou alguns brasileiros até a década de 1970 virou, hoje, uma vertente folclórica — pois todos já tiveram provas suficientes de que a aspiração de um mundo mais justo acaba sempre onde começa a algibeira, como já se dizia na década de 1920. E que aqueles que defendiam esses ideais, tal como na Rússia de hoje, o que mais queriam era chegar ao poder para também se locupletarem com subornos e mais subornos,  gozando de todos os prazeres que só a riqueza ilícita traz. Afinal, ninguém é de ferro.

Nem por isso a literatura de hoje, como aquela que teve início com o “Lazarillo de Tormes” e seguiu-se com o “Guzmán de Alfarache”, de Mateo Alemán (1545-1615?) e “El Buscón”, de Francisco de Quevedo (1580-1645), formando o ciclo da literatura picaresca, deixa de privilegiar o pobre como seu personagem principal. Só que o pobre da literatura deste começo do século 21 voltou às origens: como o “Lazarillo de Tormes”, não se rebelam contra a ordem social, aceitam estoicamente o status quo social — em que o mais ladino é sempre aquele que se dá melhor na vida.

São desenganados do mundo que sequer aspiram à escala social, mas situam-se nela como seja possível, ainda que nos seus mais ínfimos degraus. Estão integrados, fazem parte da sociedade como podem. Muitas vezes, sem saída, descambam para a transgressão, constituindo a grande parte da massa carcerária do País, formada por pessoas com até 30 anos de idade, analfabetas e desqualificadas profissionalmente -  na maioria, recrutadas para os exércitos do tráfico de drogas. Essa é a grande tragédia brasileira dos nossos dias.

Esses anônimos não são, portanto, heróis, mas anti-heróis, pois suas histórias não se desenvolvem no sentido do bem comum. Constituem, isso sim, a antítese do herói, pois o que pretendem é apenas o seu próprio proveito, a sobrevivência, e apenas isso, mesmo quando esse proveito se limita a fazer sexo com uma transeunte ocasional.
Os anti-heróis de Beneton, pícaros modernos, ou neopícaros, são assim: amorais, saem de um relacionamento para outro sem nenhum sentimento de culpa, são todos vítimas do pecado original. Como no conto “A padaria” em que o protagonista, depois de um affair com a caixa do estabelecimento comercial, acaba por abandoná-la sem nenhuma explicação, depois que o pai da garota havia sido assassinado por ladrões e a padaria da periferia teve de fechar as portas.

Em “Amores incompletos”, o cenário é o mesmo: ruas na maioria sem asfalto, de terra batida, enlameadas ou poeirentas. “Quando se vive na miséria, como periférico do sistema, as consequências da pobreza são irremediáveis”, reflete o protagonista do conto em que um pastor assassina uma fiel e se justifica dizendo que a moça o tentava quando estava no púlpito. Depois, o pastor é assassinado na cadeia por um pai de santo. Outra típica cena da tragédia brasileira dos nossos dias.

São histórias de brutalidade que já não causam nenhum estupor — tudo entorpecido, banal —, pois a transgressão da lei já se tornou lugar-comum. Histórias da periferia em que a vida nada vale, pois as instituições já não funcionam, a polícia é corrupta e cúmplice daqueles que deveria reprimir. Em outras palavras: estamos diante de um gênero típico de uma situação histórica de crise.

O conto que mais foge desse estereótipo — por sinal, o mais longo — é “A garota do Fantástico”, em que o narrador descreve o encontro surpreendente com uma ex-protagonista da apresentação de um conhecido programa de televisão brasileiro, o Fantástico, vinte anos depois de sua fama. Em 1987, ele, rapaz do interior, estudante de Direito em São Paulo, saíra atrás da garota pela Avenida Paulista, depois que a reconhecera como a moça do Fantástico, para, no final da perseguição, receber um humilhante e solene “fora”, que o marcaria por anos a fio.

Duas décadas mais tarde, ele, já advogado famoso e bem sucedido - típico exemplo dos escapes que a sociedade brasileira ainda oferece ao menos a quem ainda consegue ter acesso à educação formal — tem a oportunidade de conhecê-la numa festa de bacanas: agora, ela é apenas uma garota de programas para executivos que possam pagar por seus serviços. O desenlace surpreendente é como o advogado bem-sucedido faz para se vingar do “fora” de vinte anos atrás.

No prefácio que escreveu para este livro, o professor de História e jornalista Heródoto Barbeiro, um dos poucos apresentadores cultos de telejornais no Brasil de hoje, diz que tem certeza de que os personagens criados por Marco Beneton são conhecidos do leitor, que, por isso mesmo, tem tudo para se apaixonar por eles. Tal qual Heródoto diz ter se apaixonado por Zé Bobina, um frequentador assíduo do bar que seu pai tinha na Baixada do Glicério, região pobre e degradada do centro velho de São Paulo.

Desempregado, sem família, bebedor de cachaça, que falava mal de tudo e de todos e morava num dos inúmeros cortiços incrustados nos casarões do bairro, Zé Bobina era um desses tolos, pois não havia sabido ascender na escala social, tornando-se um anti-herói do cotidiano da grande cidade, bebendo até cair na rua, talvez para apressar um futuro que parecia certo — a morte como indigente. Se tivesse sorte, o seu corpo ainda poderia servir como fonte de estudos para os alunos de Medicina.

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa.

Literatura de primeira!

Além dos livros teóricos a Editora Horizonte também traz reflexões sobre o modo de vida hoje. Literatura de alto nível, feita por autores estreantes e talentosos. Como é o caso de Histórias invisíveis de Monica Nunes e Marco Bin e Misteriosa pureza dos tolos de Marco Beneton.


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Livros que apresentam e estudam a contemporaneidade

A Editora Horizonte, conhecida por editar livros que refletem o nosso momento, nesse ano lançou livros que enriquecem a bibliografia sobre o nosso tempo, com reflexões sociais e históricas sobre o ser humano, o modo de vida, a propriedade e outros temos que permeiam nosso cotidiano.

Em Pelas margens estão reunidos textos com abordagem teórica e crítica, que refletem sobre nossa produção literária contemporânea e sua represebtação de grupos sociais marginalizados, invisibilizados ou estigmatizados.

Neste volume a arte contemporânea é abordada em suas diversas formas de expressão, grafismo, fotografia literatura, cinema e pintura.

O direito às avessas constitui-se num conjunto de trabalhos voltados para a discussão sobre a propriedade ao longo da história do Brasil. Esta obra traz à luz a dimensão histórica do conceito de propriedade, as diversas e complexas lutas pelo direito à terra, bem como a relação entre luta pela terra e identidade, e estrutura fundiária do país.

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